A Diocese de Viseu – Nota histórica
A génese da diocese de Viseu remontará a meados do século VI, sendo a referência documental escrita mais antiga que se conhece do ano de 569.
As fronteiras territoriais da diocese, que teve sempre em Viseu a sede, ou seja o local da sua igreja mãe e espaço de residência do bispo, oscilaram ao longo dos séculos, inscritas numa região com coerência física, climática, demográfica e até identitária que viria a ser designada por Beira Alta, mas onde, até ao século VIII, por estranho que possa parecer, não se encontram vestígios físicos da existência de igrejas ou locais de oração cristãos e, antes do século X, não há indícios de vida monástica, ainda que abundem sepulturas comprovativas de que, desde há muito, ali viveriam fiéis de Cristo.
Do ponto de vista da sua extensão, população, riqueza e prestígio, ainda considerando as variações que todos estes indicadores sofreram, era uma diocese intermédia no quadro dos demais bispados portugueses, à semelhança do Porto (até à contemporaneidade), Algarve e das vizinhas Lamego e Guarda. Superior, por conseguinte, às mais modestas Miranda, Portalegre, Leiria, Elvas e, mais tarde, Pinhel, Castelo‑Branco, Beja, Aveiro ou Penafiel, mas inferior aos arcebispados de Braga, depois aos de Lisboa e Évora, além da diocese Coimbra, com a qual sempre manteve um limiar de extensa contiguidade.
Foi este um território de notável importância nos séculos primevos da História de Portugal. Pesem as polémicas subsistentes, é de admitir que nele terá nascido, e quiçá baptizado na catedral original, o primeiro rei português D. Afonso Henriques, numa época em que esta foi zona de fronteira entre cristãos e muçulmanos. A corte régia ainda voltou a residir esporadicamente em Viseu, nos finais do século XIV, e na cidade nasceria o futuro rei D. Duarte, em 1391. Com o gradual deslocamento do centro da vida política portuguesa mais para Sul e Ocidente, processo que se acentuou e consolidou a partir dos primórdios de Quinhentos, a urbe perdeu relevância estratégica.
Em 1619, o já evocado D. João Manuel, descrevia a diocese como sendo uma “terra áspera e difícil”, onde havia localidades tão remotas que apenas eram alcançáveis a pé e “com muito trabalho”. Tal não significa que toda a região vivesse isolada do resto do Mundo. O primeiro índio da América que comparece numa pintura portuguesa foi desenhado por Vasco Fernandes para a catedral de Viseu há cerca de meio milénio; os modelos estéticos de origem externa que foram surgindo alcançaram a cidade em processo no qual os bispos foram pioneiros; a presença de escravos é denunciada a cada passo em diversas fontes desde os alvores de Quinhentos; o milho foi‑se assenhoreando da paisagem rural e da dieta alimentar a partir do século XVI; e, ainda hoje, em muitos locais se encontram enormes castanheiros da Índia denunciadores de como diocesanos viseenses andaram por aquelas partes do globo.
No entanto, pese esta relativa abertura que conectava Viseu a múltiplos lugares de um Mundo que a partir do final de Quatrocentos se foi gradual e cada vez mais intensamente articulando e interrelacionando, o padrão da rudeza do território foi duradoura marca da região, comparável à rigidez granítica que, por quase todo o lado, o pontuava e até aos invernos de severa frialdade e aos verões abrasadores que o condicionavam. É certo que também era composto por zonas férteis e de vida mais amena, o que levaria Leonardo de Sousa a escrever, no século XVIII, que a diocese era “abundante de gado, copioza de frutos, fertil de hortas (…) falta porem de peixe de mar alto”, que somente lhe chegaria do Porto e de Aveiro. Mas esta circunscrita prodigalidade, mesmo onde existia, alcançava poucos. A maior parte dos cristãos de Viseu, para dizer assim, até aos anos 60 do século XX, viveram em chocante pobreza, mesmo para os padrões do tempo, tão abissalmente distantes dos de hoje. Alguns bispos mais sensíveis, vindos de fora, notaram‑no com apurada capacidade de observação e rigor analítico. D. Dinis de Melo e Castro, percebera em 1639 que o “ordinario mantimento (pela geral pobreza desta provincia) não passa de castanhas, pam de milho e caldo de hervas”, e um dos antístites que lhe sucederam, D. Júlio Francisco de Oliveira, apesar de afiançar que os habitantes do seu bispado eram “muito trabalhadores”, reconhecia que raramente consumiam carne, para além de “caldo com unto”. A fome e carências de abrigo foram uma constante. Muitos dos mais miseráveis, quando solicitavam caridade, alegavam, com cristalina e chocante crueza, que o faziam por “não terem nada de seu (…) nem casa onde morar”, como se pode ler em pedidos de esmolas feitos na Semana Santa e dirigidos ao cabido da Sé no decurso do século XVIII. A meio desta centúria, o pároco do Azinhal, constatava que muitas das suas almas, durante o Inverno, “para mitigar o frio se misturavam com os animais brutos”. Esta penúria tinha impactos nas formas de viver e sentir a fé. Em 1758, o pároco de Ramirão, como o poderiam ter dito outros curas, constatava que na sua igreja não havia sequer “sacrário” , nem ainda “irmandade alguma por ser pobre”.
É certo que também viveu em Viseu nobreza da terra, tanto na cidade como dispersa pelas suas vilas e aldeias. E fê‑lo com desafogo material, rodeada de bom gosto aprendido nas cortes régias e até em paragens mais distantes. Era composta por gente que mais facilmente comunicaria com lavradores abastados, menos com uma burguesia urbana também ela mais abonada que foi surgindo, do que com a maior parte da população. Esta, reitere‑ se, foi sumamente pobre.
Até tarde, este mundo contrastou com a grandeza, esplendor e fausto de muitos templos cristãos (sobretudo os da cidade de Viseu e de outras terras mais distintas), tal como com a abastança dos eclesiásticos que ocupavam lugares de maior preeminência na diocese, como era o caso dos bispos, cónegos e abades das mais rentáveis paróquias. Neste contexto de dramática míngua de proventos materiais, muitos locais e objectos ligados às liturgias do culto cristão eram oásis de radiante beleza e esperança que, para além da mensagem e da doutrina cristã, cativaram a generalidade dos viseenses. As marcas físicas deste sagrado cristão no território e nos corações dos homens e mulheres que o foram habitando tinham raízes muito remotas no tempo. Em Setecentos, em muitos locais havia esparsas notícias de se realizarem festas, cultuarem imagens ou existirem determinadas ermidas desde o tempo “dos godos” e dos “mouros”. Eram “tradições” cuja fonte era tão vaga quanto imprecisa, mas que denotam a sensação deque havia dimensões de crença oriundas de um passado nebuloso e distante, costumes ligados a dimensões de contacto com o sagrado cristão que ciclicamente se repetiram durante séculos alimentados por gerações sucessivas.
Não era possível ignorar a presença física, material do cristianismo neste território que se foi adensando com o decorrer do tempo. Em 1675, ele estaria dividido em 290 paróquias com as suas igrejas matrizes e o implícito pagamento de taxas para o seu sustento e dos clérigos, a que acresciam mais 680 ermidas, quatro conventos masculinos e cinco femininos, além de templos de seis misericórdias, tudo servido por um contingente clerical que se estimava em 875 sacerdotes, a que se somavam os cónegos da Sé, frades, monges e muitos outros clérigos que não tinham ainda recebido ordens sacras. Uma profusão de cruzes encimavam as portas das casas ou lembravam Cristo na beira dos caminhos e no centro de aglomerados populacionais. O cristianismo via‑se e palpava‑se, possuía uma dimensão tangível. Além disso a presença das normas e do poder da Igreja, nomeadamente através da acção dos seus bispos, foi‑ se tornando cada vez mais rotineira na vida das populações. Basta dizer que, desde o século VI, há memória da realização de visitas pastorais na Península Ibérica, as quais se foram celebrando cada vez com mais frequência a partir do século XIV no território viseense, jamais se interrompendo até ao presente, ainda que a ritmos e com características diferentes consoante as épocas.
Neste ambiente, o cristianismo inundou os dias vividos dos crentes, insinuando‑se nas suas formas de comunicar, imaginar e de se comportarem, em público e em privado, tantas vezes ainda antes de lhes terem sido apresentados os fundamentos da doutrina cristã. O cristianismo moldou as populações, desde o acto de comer aos sacramentos a que aderiam, sem esquecer o modo como ocupou e definiu a sua vida interior, e muitos habitantes do bispado, até sem conscientemente o saberem, tinham uma concepção providencialista do tempo e do mundo. “Deus nos livre” ou “livre‑nos Deus”, não havia frase, dito, pensamento referente a um aspecto negativo da vida, a um receio, a um desastre que não terminasse assim. De igual modo, todas as manifestações de ventura e bom agoiro encerravam com um “se Deus quiser”. Estas expressões foram constantes na boca da maior parte da população desde épocas impossíveis de determinar até tarde no século XX.
Após séculos da presença cristã em Viseu, alguns dos seus bispos reconheciam a especificidade da fé dos seus habitantes. D. José Correia de Carvalho, em 1893 ‑ num tempo que já foi de profunda contestação da Igreja e da religião, tinha consciência de presidir a uma diocese onde “desde remotas eras é vivo o sentimento da sua fé [da populações]”, e D. José Moreira Pinto, ainda em 1941, afirmava categoricamente que Viseu era uma das dioceses “mais cristãs do país”. Se a catedral, sobretudo depois das obras que ali mandou fazer D. Diego Ortiz de Vilhegas há cerca de 500 anos “marcou a cidade para sempre”, o cristianismo sulcou vincos profundíssimas neste território e nas suas populações.
Retirado (adapt.) de: PAIVA, José Pedro (coord.) – História da Diocese de Viseu. Viseu: Diocese de Viseu e Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016. Vol. I., p. 10-13