Observatório Pastoral
Qualquer tradição espiritual traz agrafada a si um manifesto programático que recolhe o sumo da própria mensagem.
No AT é o decálogo que diz “observa isto e serás salvo”. No discurso de Benares de Buda diz-se: “foge do mundo da impermanência e serás salvo”. No discurso das bem-aventuranças Jesus diz aos seus: “transforma-te e serás salvo”. Ou seja, transforma o teu modo de pensar e as razões mais profundas do teu agir. Não te contentes com aquilo que é a mentalidade comum: não acredites no ter, no poder e no sucesso como ser humano, mas torna-te humano. Torna-te “húmus”, aderindo ao princípio da teologia da incarnação: verdadeiro Deus no verdadeiro homem. É essa a verdade de ti. A vida em qualidade e não em quantidade.
Chora com quem chora, porque só os olhos rasos de lágrimas podem ver Deus. Essas lágrimas que nascem provocadas pela injustiça. Parte o teu pão com os famintos da história e saberás que só quem se faz pão para saciar a fome dos outros pode extinguir a própria.
E torna-te pobre, desprendido das falsas imagens de ti, da falsa benevolência estética, dos pré-conceitos, das falsas expetativas ou do olhar autorreferencial para dentro. Despoja-te do julgamento dos outros, do desejo de ter sempre razão em detrimento da razão dos outros; ou de tentar permanecer sempre na crista da onda, afundando os outros para o efeito. Aliás, “os vencedores não sabem o que perdem” (Gesualdo Bufalino).
Olha o teu mundo interior e dá um nome às tuas sombras, ao teus monstros e companhia e saberás que tudo tem origem na mesma fonte que te habita. No fim, olhar significará estar de acordo com aquilo que vês, ou pacificado com isso, tudo justamente nomeado e vencerás assim o medo, porque “quando já nada se tem, também já não temos medo” (Patriarca Atenágoras).
Além do mais, o programa de Jesus pauta-se pela coerência interna. O “Eu vim trazer uma boa-nova aos pobres”, da sinagoga de Nazaré, é retomado com “felizes vós, pobres”. O pobre é o “lugar” da felicidade de Deus, nas suas cruzes e despojamentos. (…)
Se Jesus tivesse dito que a pobreza é injusta, que deve ser eliminada, seria uma política social. Em vez, significa olhar a história com o olhar de pobre, não de rico, porque, de contrário, nada mudará! Pensamos que as bem-aventuranças ocorreram porque anunciam uma alternância… Não! O mundo não será melhor só pelo facto de se acumular mais dinheiro!
David Maria Turoldo di-lo melhor: “O verdadeiro problema do mundo não é a pobreza, mas a riqueza! A pobreza quer dizer liberdade do coração em relação aos bens; liberdade como paz com as coisas, paz com a terra. É fonte de toda a paz. O rico, em vez, é um homem sempre em guerra com os elementos: um violento, um usurpador; a primeira causa de desordem do mundo. Não são os pobres os culpados da desordem, não é a pobreza o mal a combater; o mal a combater é a riqueza. É a economia do mundo que o exige: sem a pobreza não há salvação para o consumo das fontes energéticas; não há possibilidade de pão para todos; não há relação harmoniosa com a vida, com a fraternidade; não há possibilidade de paz. Precisamente, não há bem-aventurança e felicidade para ninguém. Porque não há paz com a terra, com as coisas e com a natureza. Não há respeito pelas criaturas.”
Pe. Humberto Martins, Sacerdote Dehonia