Nos últimos tempos têm sido frequentes as notícias sobre grupos de católicos que se mobilizam para discutir e criticar certas questões, como a dos cristãos «recasados» e o seu acesso à comunhão, ou ainda sobre a reforma da liturgia. As interrogações são legítimas, e todo o debate sério, ainda que exigente e com o seu quê de ‘desconfortável’, é sempre bem-vindo. Implicitamente, estas questões parecem apontar para um problema mais silencioso, mas fundamental. Não estará a Igreja a «adaptar-se» demasiado às «modas contemporâneas»? Estaremos a perder o rumo?
A ideia de ‘perder o rumo’ significa, desde logo, um receio de perda de «identidade». Adaptando-se excessivamente, a Igreja corre o risco de deixar de ser quem é e de perder a sua «diferença» face a tudo o que não é cristão. Desde os começos, a Igreja tem-se posto a questão: o que significa «ser cristão»? Haverá alguma coisa de «específico»? A pergunta pode parecer estranha, mas ela tinha/tem que ver com coisas muito práticas: será que os cristãos devem viver misturados com os ‘não-cristãos’? Podem os cristãos fazer os mesmos trabalhos, ver os mesmos filmes, ter os mesmos gostos de um ‘não-cristão’?
As primeiras comunidades cristãs tomaram uma decisão clara: os cristãos vivem onde todos os outros vivem e trabalham como todos os outros. «Vivem no mundo, mas o seu coração está no céu», como diriam os cristãos dos primeiros séculos depois de Cristo. É uma intuição profunda, mas difícil de concretizar/definir a priori. A diferença cristã é real, mas discreta. A dificuldade de manter essa «diferença» continuou no momento em que o cristianismo se massificou: será que basta nascer em «solo cristão» para se ser cristão? O cristianismo é apenas um «costume»?
A questão da «diferença cristã» não toca apenas à relação entre o cristianismo e o espaço não-cristão. Aliás, o problema coloca-se desde logo no interior do cristianismo. Viver como «comunidade» implica saber conjugar a diversidade na unidade. Assim, o cristianismo tem uma multiplicidade de textos, de ritos, de movimentos, de correntes espirituais, de perspetivas teológicas; mas também de funções e vocações no interior da comunidade. A fidelidade, no cristianismo, passa por uma capacidade de integrar a diversidade. Certas «guerras litúrgicas» e «teológicas» a que temos assistido ilustram bem a dificuldade real desse processo. Como acolher a diferença de posições de maneira cristã, desde logo no seio da comunidade?
Esta capacidade de se tornar «hospitaleiro da diferença» requer uma maior e melhor circulação de palavra. A Igreja tem mudado bastante, a este propósito – e ainda bem. Os leigos têm cada vez mais «voz»: uma voz credível, informada, inteligente e ativa; uma voz de discernimento e de missão. Se, antes, a palavra estava concentrada nos clérigos ou religiosos, hoje ela circula por muito mais pessoas. Naturalmente, multiplicando-se as vozes, multiplica-se também a hipótese de crítica e de desacordo. Querer reprimir as vozes por medo da crítica ou para evitar conflitos não parece ser o caminho a seguir. Requer-se, isso sim, uma forma de falar e de ouvir cada vez mais inteligente e crítica; e também mais benevolente e adulta. E isso aprende-se falando. Mas esta aprendizagem requer também que saibamos distinguir entre «fidelidade e fixismo», entre «unidade e uniformidade» e entre «fins e meios». Fundamentalmente, isto exige que se supere o olhar de suspeita e condenação do outro, conservador ou progressista. Mergulhados em trincheiras, tornamo-nos todos relativistas: perdemos todos o rumo.
Pe. Rui Fernandes, S.J – In PontosSj