Li, esta manhã, que o verbo escolhido por Isaías para “a poesia do ouvidor” é o mesmo que na escritura sempre se usa para a ação de escavar um poço: «todas as manhãs ele escava os meus ouvidos para que eu oiça, como fazem os discípulos» (Is 50, 4-5). Pressinto que escutar é uma das tarefas mais prioritárias para a Igreja. Se é corpo de discípulos é corporação de ouvintes. E escutar é uma das dimensões de acolher. Não basta, mais uma vez, transformar o “todos, todos, todos” num slogan infantil, mas converter as nossas experiências comunitárias em lugares de hospitalidade incondicional. Escutar e acolher não é tão natural quanto imaginamos e, ainda por cima, temos vícios antigos de usarmos palavras definitivas e abusarmos de sentenças moralistas.
O primeiro nível de conversão para a escuta que nos faz falta é, certamente, o mais inspirador para os outros: escutar as escrituras numa nova relação menos cerimoniosa e menos processada. Nas nossas igrejas, o contacto com a bíblia ainda permanece quase totalmente circunscrito ao contexto da liturgia dominical. Aí, todo o enquadramento para a palavra resvala facilmente para o cerimonioso. Muda-se o tom de voz, a cadência, o aparato. Por mais inconsciente que isso aconteça, a palavra inspirada das escrituras aparece assim desligada das coisas normais. Faltam ainda experiências simples de contacto direto com as escrituras em ambiente fraterno e simples, sem outro cerimonial que o do desejo de escutarmos juntos uma palavra que está tão viva quanto o presente indicativo de um Verbo. Faltam ainda pequenos grupos de gente que se junte para um encontro com a bíblia mais dialogado e partilhado, porque esse é o processamento que convém ao Espírito Santo para continuar a inspirar a leitura, a escuta e a obediência.
Creio que é desta escola discipular de escuta que nascem outras, como a escuta dos irmãos em comunidade. A verdade é que, quando as pessoas se juntam à roda do Verbo, soltam-se também nelas palavras que traziam aprisionadas e escondidas, tantas vezes. O exercício do acolhimento fraterno e da escuta reparadora não está separado da convivência com as escrituras.
O percurso do Sínodo tem sido uma oportunidade para a eutopia desta escuta. Não só pelo estímulo a que todos se envolvam nela, mas até pela metodologia proposta da “conversação no Espírito” que, certamente, não apareceu apenas para este “evento eclesial”, mas que espera tornar-se o “estilo eclesial” para o discernimento e os processos de tomada de decisão. Não precisamos de declarações pontifícias em documentos solenes para pormos isto a andar na prática das nossas pequenas comunidades, grupos, movimentos eclesiais. É hora de futurarmos o amanhecer de uma nova era do cristianismo que continua a despontar como broto tenro no ramo envelhecido da robusta cristandade. (…)
Um imenso desafio missionário é creditar a Escuta como modo de servir a Palavra. A pregação da Escuta. Precisamos de uma conversão de fé para acreditarmos que Escutar genuinamente é uma forma de Anunciar o Evangelho. Como antes organizávamos tempos e espaços para a pregação, estamos hoje chamados a desencadear tempos e espaços para o Diálogo. O Diálogo é também uma forma de oratória sagrada e talvez seja, hoje, um dos registos de oratória que mais nos faz falta.
A conversão do púlpito em lugares de Diálogo e o desconfinamento do confessionário em processos de Acolhimento: eis um desafio que deve tocar toda a habitabilidade dos nossos tempos e lugares eclesiais.
Pe. Rui Santiago
In Ponto Sj