A Diocese de Viseu é uma circunscrição eclesiástica da Igreja Católica em Portugal

O termo ‘teodiceia’ (Leibniz, 1710) pode parecer antiquado, no entanto, o tema possui uma incrível atualidade. Se o Concílio Vaticano II afirmava que uma das ‘fontes’ do ateísmo era o contratestemunho dos crentes (cf. GS 19), poderemos constatar que a presença crescente do sofrimento é outra fonte do ‘abandono da fé’, ainda mais radical. Alguns crentes não conseguem compatibilizar a afirmação de um Deus Bom com a coexistência do mal e do sofrimento. No Mistério do Natal afirmamos que ‘Deus mergulhou na escuridão e fez a diferença’ (B. Ehrman, God’s Problem, 5). Se ‘mergulhou’ nas trevas da noite, porque não regressa continuamente para aliviar o sofrimento crescente? Verifiquemos três testemunhos desta experiência. O grito de H. Kushner: “Porque é que as coisas más acontecem às pessoas boas?” (cf. Kushner, When bad things happen to good people) não se dirige apenas a Deus, mas à presença reconfortante daqueles que se aproximam para aliviar o sofrimento do outro. A morte trágica do filho deste rabino, aos 14 anos, abalou a sua crença em Deus. Não há explicações, e a tentativa de criar uma ‘ordem’ levará a constantes frustrações e revoltas. Harold foi interiorizando que as coisas más acontecem às pessoas boas e, por isso, não se trata de uma punição, pois Deus teria errado muitas vezes no cálculo. Introduz uma abordagem diferente, ‘limitando’ o conceito de Deus todo-poderoso. Deus seria ‘incapaz’ de controlar tudo o que acontece a cada ser humano. Se assumirmos que o mal não vem de Deus, podemos pedir-Lhe conforto, em vez de julgamento. As ‘tragédias’ naturais não são seletivas e Deus não têm listas de pessoas boas e más para as incluir nesta ou naquela ‘tragédia’. Os acontecimentos podem ser simplesmente aleatórios. Trata-se de uma conaturalidade: coisas boas e más fazem parte do ‘pacote’ da nossa vida. A oração comunitária é a expressão elevada do consolo. A pergunta pela presença de Deus ausente, no clássico – A noite – de E. Wiesel (La nuit) evidencia a necessidade de inquietar a Deus. O livro de Elie retrata a sua experiência por volta dos 15 anos num campo de concentração mostrando a ‘morte de Deus na alma de uma criança que experimenta o mal absoluto’ (10). O autor descreve as atrocidades perpetradas pelos homens, sob o ‘silêncio’ de Deus. Parte do real visível, das ‘fornalhas incineradoras’, com consequências espirituais irreversíveis: «Vi corpos transformados em fumaça sob um céu silencioso, nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram a minha fé, nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram o meu Deus» (43). Todos perguntam: “Onde está Deus?” (11). Alguns ensaiam uma resposta: “Está naqueles que são torturados!” Elie assinala que esta experiência foi uma terrível ausência: de Deus, do ser humano, do amor e da misericórdia (11). O autor assume uma ‘rebeldia simbólica’, como protesto perante o ‘silêncio’ de Deus, anulando o culto e o louvor a Deus. Recorda como era traumática a seleção aleatória do extermínio. Feita a seleção era como se todos fossem executados, lançados na incineradora, nas valas comuns ou nas câmaras de gás. A ‘sorte’ de não ser selecionado num dia era apenas ilusória, visto que a ‘sorte’ comum já estava sentenciada.

Um terceiro autor – Primo Levi – mostra-se incapaz de conciliar a existência de tanto mal ‘consentido’ por um Deus de bondade. Nascido em Itália, foi levado para os campos de concentração. No seu primeiro livro – Isto é um homem? – mostra a crueldade, sem réstia de sentimento ou emoção, dos seres humanos a exterminar outros. O autor descreve como se ‘chegou ao fundo’ da inumanidade. Na experiência da total ausência de ‘humanidade’ nega qualquer referência superior de Bondade, formulando uma sentença: «Há Auschwitz, logo não pode haver Deus!» Num conto – Lilit – Levi expõe o ‘pecado’ de Deus ao consentir o mal emanado do coração humano.

P. Virgílio Marques Rodrigues

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