A morte e a sua inevitabilidade sempre foi envolta numa aura de mistério, suscitando, em todos os quadrantes civilizacionais, repercussões familiares, pessoais e sociais, com variadas manifestações de índole ritual, visíveis em tantos vestígios arqueológicos e monumentos de inestimável valor artístico, cultural e religioso. Recordem-se, por exemplo, as célebres pirâmides de Gizé, com quase cinco mil anos, e tantos mausoléus, como o belo Taj Mahal, na Índia (séc. XVII), panteões, obeliscos, estelas, antas, dólmenes, panteões. Enfim, um sem número de documentação construída existente, também, na nossa região.
Com as referências edificadas, subsistem antiquíssimos cerimoniais funerários: ritos pré-morte, preparação do cadáver, o enterramento, a cremação, oferendas aos falecidos, orações, danças fúnebres. Todo este legado, quase sempre de rara beleza construída, escrita, ritualizada, sustenta-se na convicção de que a morte não é o fim absoluto da vida, mas a afirmação convicta, religiosa ou não, do vínculo e comunhão entre vivos e defuntos e de invocação da divindade, princípio e garante de imortalidade, de crença na eternidade, mesmo se inexplicáveis, porque fora do alcance da compreensibilidade humana. Na cultura cristã, moldada nos ensinamentos de Jesus, que afirmou: “Eu sou a Ressurreição e a vida quem acredita em Mim, ainda que morra, viverá” (Jo 11,25), essa convicção foi, e é, determinante na fé da Igreja, expressa no Credo: “Creio na Ressurreição dos mortos e na vida do mundo que há-de vir”. Por isso, se reza na Missa pelos Defuntos: “A vida não acaba, apenas se transforma”. A vida e o seu fim terrenal, visível e corpóreo na morte, comporta um cariz de mistério, cultualizado em múltiplas formas.
Já na mais remota antiguidade os povos pagãos destinavam dias próprios para a comemoração dos seus mortos, também a Igreja, desde os primórdios, manteve esse costume, em modos compatíveis com a fé cristã. Há testemunhos, desde o séc. II, de orações pelos mortos, que incluíam a missa no 3º dia após a sepultura – Jesus ressuscitou ao 3º dia – e comemoração anual. Só mais tarde se acrescentou o 7º e o 30º dias.
O costuma de guardar um dia para a comemoração de todos os fiéis defuntos surge a primeira vez com Isidoro de Sevilha (+636), que ordenou aos seus monges que oferecessem a missa pelos fiéis defuntos, no dia seguinte ao Pentecostes. Foi, porém, no ano de 998 que o abade Odilão de Cluny decretou que nos mosteiros da sua ordem se comemorassem Todos os Fiéis Defuntos no dia 2 de Novembro. Cedo se propagou esta prática a França, Inglaterra e Alemanha e no séc. XIII popularizou-se na Itália e Roma. No séc. XV, os dominicanos de Valência estabeleceram que cada sacerdote celebrasse três missas – como as três missas de Natal: a morte é o dies natalis. Essa norma estendeu-se a Espanha, Portugal e América Latina no séc. XVIII e, em 1915, o Bento XV universalizou-a. O culto aos mortos companha, assim, o ciclo da natureza: em Novembro, dias sombrios e minguados, cair da folha, evocação da finitude, o “mês das almas”, evocação dos que partiram deste mundo: a ida aos cemitério, o adorno das campas, acender uma vela, o silêncio, um gesto de memória agradecida, enfim, é o amor criativo. Para os que crêem em vós, Senhor, a vida não acaba apenas se transforma. E nós acreditamos.
José Henrique Santos