No “recorte” paisagístico das localidades, não obstante as alterações de volumes e de organização decorrentes das modernas construções, as torres dos edifícios religiosos ainda assumem especial protagonismo. Torres que, para além da sua componente estética, compreendiam o propósito de, através do sino, marcarem o ritmo do tempo das comunidades, convocarem os fiéis para a celebração da eucaristia ou alertarem para a ocorrência de acontecimentos felizes, como um nascimento, ou menos felizes, como as mortes ou os incêndios e outras calamidades.
Neste âmbito, constituíam elementos que motivavam a unidade entre os habitantes, que coletivamente descodificavam os sons emanados pelo sino. Simultaneamente, as torres e os sinos congregam simbolismos religiosos: as torres impõem-se na paisagem e, assim, reforçam a importância da igreja, que se demarca das construções envolventes; orientam o olhar dos fiéis para o alto, para o céu e para Deus; os sinos constituem um sinal de anúncio e de louvor a Deus e os seus sons metálicos corporizam a voz protetora de Deus. Associados às torres elevam-se os cataventos, que indicam a direcção do vento. À maioria das igrejas e capelas está associado um adro, com maior ou menor dimensão, por vezes disposto em plano mais elevado em relação ao espaço circundante, e o acesso ao portal principal é antecedido por degraus, definindo assim um percurso de hierarquização do espaço profano para o mais sagrado, posicionando os visitantes num caminho, orientado para a porta principal de cada uma das igrejas, mas também numa perspetiva de enquadramento de um espaço que acolhe, que congrega e convida ao encontro, ao convívio, ao anúncio, antes e depois das celebrações.
Os portas das igrejas representam muito mais do que as funcionalidades de proteção e de entrada e saída. Em cada igreja constituem o portal simbólico de busca incessante do local onde se vive o amor incondicional, do espaço que constitui a “cidade de Deus” na terra.
Pelas portas das igrejas passam, na atualidade, muitos turistas e visitantes com o simples objetivo de verem o edifício, de contemplarem o património, mas a verdadeira compreensão de cada um destes espaços pressupõe o seu entendimento como um local que vai muito para além da materialidade, da simples expressão de uma sintaxe estilística. As entradas das igrejas incorporam todo um universo de vivências, directamente relacionadas com o edifício, mas invisíveis, que são o suporte da real apreensão da dimensão e do sentido destes locais.
Quantos sentimentos de alegria e esperança, quantos corações sobressaltados e cheios de dor, quantas escolhas de mudança, desejos de milagres, pedidos de misericórdia divina, apelos à intercessão de Cristo, Nossa Senhora ou dos Santos, vontades de recolhimento, rostos sorridentes e rostos com lágrimas, passaram por estas “portas do Céu”, em contextos de celebrações da eucaristia, de festividades, de procissões, etc., ou na simples procura do espaço para a oração individual? Vivências que podem ocorrer em qualquer local, mas estas são sustentadas na imensidão da fé, num acreditar e confiar incondicionais, num amor que não se explica, sente-se. Trata-se de um universo que não tem representação material, mas que existiu e existe, está vivo, ainda que não vivido e compreendido por todos, tem de ser resgatado para a linha de pensamento e de interpretação dos que procuram compreender verdadeiramente o espaço das igrejas.
Fátima Eusébio, Departamento dos Bens Culturais da Diocese de Viseu
(Artigo publicado na edição de 4.9.25 do Jornal da Beira)