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Observatório Pastoral

 

«Olha para o céu e conta as estrelas, se as puderes contar». E acrescentou: «Assim será a tua descendência». (Gn 5,12)

Testamentos, heranças e contratos assinados. Testamento vital… Uma descendência numerosa em casa… entre filhos de diversas idades… filhos e netos… e a vida que passa por nós…

Deus tinha prometido a Abraão uma descendência e uma terra (Gn 12,2;13,15). Mas as coisas parecem pouco prováveis por causa da esterilidade de Sara, sua mulher. Há um património sem um matrimónio. Há a parte do pai e não há a da mãe. Abraão pensa até em adotar um filho ou arranjar um bastardo.

Mas Deus tem outros planos e, como prova da sua intenção, celebra um contrato-promessa com Abraão. Este contrato tem um pormenor… só Deus assina o contrato, porque só Ele assumiu a responsabilidade de cumprir o que estava no contrato… É um contrato sem condições. Não há aqui aquela lógica de contrato que tantas vezes projetamos em Deus: “se não te portares bem, Deus castiga; se me deres isto; eu dou-te aquilo…” nada disso! (…)

Sabemos que o que tantas vezes deteriora a relação entre gerações são as heranças de coisas materiais. A verdade, porém, é que os filhos herdam cada vez menos da riqueza acumulada pelos pais e avós. E não só material como também imaterial (a cultura, os costumes, a religião).

Parece-nos que está reservado aos nossos filhos um futuro mais sombrio porque a herança que lhes é passada parece cada vez mais despojada de “coisas” do passado, tornando-os mais pobres e menos capazes de contar com aqueles que vieram antes deles. Hoje vivemos sobretudo de “não-coisas”.

Jacques Lacan (psicanálise) ensina-nos, porém, que a herança que mais conta não é tanto a constituída por bens ou rendimentos patrimoniais. São palavras, gestos, costumes e a memória de quem nos precedeu. Tem a ver com o modo, através do qual, aquilo que recebemos é interiorizado e transformado em nós. No herdar não se trata, portanto, de um movimento simplesmente aquisitivo e passivo, como receber um presente. Os nossos filhos herdam o que respiraram nas suas famílias e no mundo e fizeram disso o seu próprio mundo. A mais verdadeira das heranças consiste no como fizemos tesouro dos testemunhos que pudemos reconhecer dos nossos antepassados.

Um herdeiro não se pode limitar a receber aquilo que os antepassados lhe deixaram, mas deve completar. Goethe fala como que duma reconquista da herança: “aquilo que herdaste dos pais, reconquista-o se o quiseres possuir”. Nessa linha aquilo que conta na herança é a transmissão do desejo duma geração à outra e não o usufruto do que sobra. É o modo através do qual os nossos pais souberam ou têm sabido viver nesta terra tentando dar um sentido à sua própria existência; é o modo como os pais deram ou têm dado testemunho do seu desejo ali, precisamente, se pode viver com visão, com ousadia e gosto, dando sentido à nossa presença no mundo, representado no convite de Deus a Abraão “olha o céu e conta as estrelas”. (…)

Neste sentido o justo herdeiro é aquele que pode receber algo dos pais porque não se limita a reproduzi-lo passivamente. Não é este o destino de qualquer filho? Não será que, no processo de filiação, não estará talvez sempre em jogo a herança como “heresia”, como desvio criativo do sulco traçado por quem nos precedeu?

 

Pe. Humberto Martins
Sacerdote Dehoniano
CategoryDiocese, Pastoral

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