Observatório Pastoral
As estradas portuguesas voltaram a sentir os passos dos peregrinos que, em tão grande número, se deslocam para Fátima. Ultrapassada a pandemia da covid-19, não faltam notícias nos meios de comunicação social a confirmar o regresso ao passado: «estão de volta os grandes grupos de peregrinos. Ao nível da pré-pandemia». Uma constatação interessante, quando, em geral, a Igreja percorre outra peregrinação: a diminuição do número de fiéis praticantes. Um contraciclo que me interroga: porque é que os peregrinos estão de volta a Fátima e as comunidades cristãs refletem sobre o tempo das igrejas vazias? Não procuro com este texto apresentar uma resposta a esta pergunta – não acredito que tenhamos uma resposta simples para ela – mas quero aproveitar este “sinal dos tempos” para convidar a olhar com atenção para o peregrino e a peregrinação.
E começo, definindo o ser humano, hoje, como um nómada à procura da liberdade absoluta. A cultura moderna – a nossa – revela um indivíduo com novos sinais e valores que deixaram de se inserir numa pertença ou comportamentos regulados pelas instituições. Vivemos um processo progressivo de desenraizamento comunitário que leva a que a consciência de cada um se torne o seu próprio juiz. A individualização e subjetivação marcam este tempo. Talvez isto nos ajude a perceber o olhar sociológico de Alfredo Teixeira acerca do fenómeno religioso português que vive uma espécie de passagem do «modelo praticante» para o «modelo peregrino», em que a prática é definida, não pela pertença comunitária, mas pelo acontecimento excecional e pela intensidade de um determinado momento, que é único e passa a ser concebido como um momento-chave da identificação religiosa. Algo muito visível no fenómeno Fátima, continua A. Teixeira, que se transforma nesse trânsito entre destradicionalização e individualização, tornando-se referência para o curso da vida, segundo ritmos moldáveis às biografias e não como quadro de rigidez institucional (cfr. Alfredo Teixeira, A religião na sociedade portuguesa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa 2019, p. 48-51).
Nada de novo se prestarmos atenção ao fenómeno da Nacional 2, aos variados passadiços e, claro, à crescente importância dos caminhos para Fátima e Santiago de Compostela, por exemplo. A experiência de caminho, de liberdade e de uma espiritualidade que preenche as nossas sedes interiores, justifica cada passo e cada sacrifício para chegar à meta. E bem! Mas estes novos peregrinos fazem também uma experiência comunitária que é um autêntico caminho conjunto, um verdadeiro sínodo: colocam-se a caminho com outros. Mesmo com motivações diferentes, reconhecem que vão juntos e apoiam-se mutuamente porque o ponto de chegada é o mesmo; há uma grande disponibilidade para a partilha e para a escuta; sentem a importância da ajuda externa ao longo do caminho… E se houver um padre na peregrinação, este faz uma autêntica experiência pascal (Lc 24, 15-35): pela proximidade do caminhar lado a lado (humanidade), pela disponibilidade para a escuta (confiança) e renovando a missão para reconciliar e celebrar a Eucaristia (sacramento).
Acredito que peregrino e peregrinação são, hoje, um dos lugares de encontro que vale a pena aprofundar para redescobrir a dimensão comunitária da fé e, simultaneamente, a urgência para renovar as nossas comunidades cristãs. Porque não começar por convidar os peregrinos a partilhar a sua última experiência, acolhendo-os e escutando-os?