A mudança de olhar assinalou o Concílio Vaticano II (1962-1965). Por aqui se começou. Por um lado, pela forma da Igreja olhar para o que estava fora de si, o “mundo” moderno que, particularmente desde a revolução francesa e com as revoluções liberais, passara a ser-lhe estranho e hostil. Por outro, pela disposição a deixar-se olhar por esse “outro” diferente de si e pela disponibilidade para aprender com ele. Foi a esta mudança radical que João XXIII iniciou a Igreja quando convocou o último concílio.
Por esta fidelidade à conversão do olhar – cremos – deverá continuar a passar, também hoje, o anúncio do Evangelho. Não é pouco. Não é imediato. Pensemos, por exemplo, no modo de olhar e, sobretudo, de nos deixarmos olhar pela realidade da mulher, da sexualidade, das múltiplas periferias, da vida urbana ou das alterações climáticas. Como se compreendem e se exprimem, hoje, na nossa cultura? (…)
Trata-se de uma mudança de olhar pela ativa. Olhar o mundo com outros olhos – as vidas reais, o contexto, a cultura, a história –, de modo a deixar de o ver imediatamente como erro a corrigir, degradação a emendar, culpa a condenar, inimigo a combater. O olhar dos «profetas de desgraças», vigilantes anunciadores de «acontecimentos sempre infaustos», como João XXIII se lhe referiu no discurso de abertura do Vat. II, a 11 de outubro de 1962, poderia parecer devoto e zeloso, mas não seria ajustado nem fecundo. Esse olhar sobranceiro e míope, que vê mal porque vê pouco, não servia de todo a vida e a missão da Igreja. (…)
Quase sessenta anos volvidos do Vat. II, no contexto que é o nosso, bem diferente dos anos sessenta do século passado, o ministério do Papa Francisco coloca-se – pensa e age – em plena sintonia com esta mesma mudança de olhar, acrescentando, com renovado impulso e corajoso empenho, um novo elo ao processo de receção do concílio. A compreensão da natureza da doutrina, a relevância atribuída à cultura ou a relação estrutural entre autoridade e liberdade confirmam-no. O desmascaramento de múltiplas tentações de autorreferencialidade eclesial, a disposição a deixar-se interpelar pelas vidas reais e pelas situações existenciais concretas, são disso tradução. A missão evangelizadora da Igreja é confirmada na contínua atenção e discernimento dos “sinais dos tempos”, esses traços marcantes do tempo em que a Igreja se encontra e que é chamada a reconhecer e a discernir, na convicção de que Deus fala por eles, com os quais tem algo a aprender. (…)
A fidelidade no anúncio do Evangelho joga-se, pois, na tensão entre conservação e mudança. Por isso, a transmissão da fé é necessariamente ato de tradução, mesmo sabendo que esta está sempre exposta ao risco da traição. (…) A fidelidade não se atua no decalque perfei to, na mera recapitulação do que, supostamente, “sempre foi assim” ou do que “teria sido assim desde sempre”. Também por este ofício de tradução passará esse movimento de Igreja em saída (EG 20), como contínuo exercício pastoral de atenção-anúncio-interpretação-tradução da verdade evangélica. Implicará, para isso, como sintetiza D. Albarello, «sair dos esquemas habituais que, em grande parte, já não funcionam». (…)
Sair, portanto, para evangelizar e para ser evangelizados. Sair para ensinar, mas também para aprender.
P. José Frazão Correia, In Pontos Sj