
Quando penso em temas de corpo, surge-me este verso de Sophia de Mello Breyner, do poema Dias de Verão. Nós, em corpo, somos justos de ajustados. Enquanto humanos, há um equilíbrio divino, podemos dizer, de como tão magnificamente tudo se conjuga no nosso ser. No relato da criação, o ser humano é a última realidade a ser criada, quando tudo estava pronto para o acolher. É criado à imagem e semelhança de Deus, que viria a assumir em pleno a beleza da corporeidade encarnando. Este acontecimento altera o curso da humanidade. O corpo não é refugo, sepulcro, parte do ser humano, mas existencialmente integrado na pessoa. O ser humano não tem um corpo, o ser humano é corpo.
Ainda assim, que corpo é este? Quem somos nós em corpo. Apercebo-me que ainda se vive a tensão dualista, onde, por um lado, se prima por uma pureza de alma, com a mais ou menos subtil castração, muitas vezes em nome de Deus. Por outro, uma hipersexualização da realidade, que reduz a pessoa a um mero objeto de prazer. Ambos extremos, causam danos sérios na pessoa e nas suas relações. Ajustando a realidade, parece-me importante encontrar a virtude no meio, através da integração da pessoa nas suas dimensões física, emocional, racional, relacional e espiritual. (…)
O que acontece organicamente, também como efeito das nossas relações e de como somos educados, é fascinante. Ou, preocupante. O desajuste interno, provocado por excessivas moralizações ou permissões sexuais, é de tal ordem que leva ao desenvolvimento de doenças psíquicas, como depressões, e físicas, por exemplo, auto-imunes. Em O Corpo Não Esquece – Cérebro, Mente e Corpo na superação do trauma, o psiquiatra Bessel Van der Kolk, escreve: “se durante a infância, formos maltratados, ignorados ou crescermos numa família onde a sexualidade é tratada com repugnância, então a mensagem do nosso mapa interior será diferente. O nosso sentido do nosso “eu” será marcado pelo desprezo e pela humilhação.”
Também por saber disto é que me dá profunda tristeza quando, sobretudo em contextos mais eclesiais, ao ler ou escutar sobre corpo e sexualidade, noto que é tratado em vista ao “santo propósito” de encontro com a pureza, ou ao ser-se imaculado diante de Deus. Temas ligados com a sexualidade, em específico com a genitalidade, deveriam ser tratados como um todo e não através, quase em exclusivo, da capa do bem e do mal. Quando isso acontece, há o sério perigo de voltar a algo que Jesus cortou de forma radical: a distinção entre puros e impuros. A obsessão nesta via do bem e do mal em relação ao corpo acaba por ser muitas vezes reveladora de frustração, de medo, de vergonha, até mesmo de nojo do corpo ou seja, de si próprio. Por outras palavras, acaba por ser uma projeção de quem tem dificuldade de lidar com estes temas na sua própria pessoa. (…)
Recordo que a parábola do juízo final dá atenção ao corpo, sim, mas em nada sobre questões sexuais, apenas na importância que se deu ao outro: no alimentar, no tirar a sede, no vestir (não por razões pudicas, mas de dignidade e proteção), no visitar, no estar. [Cf. Mt 25, 31-46].
A corporeidade é tão densa de Deus, que há medo de ir mais fundo nesta relação. O mais fácil é espiritualizar a realidade, num etéreo bonito e quase cândido. No entanto, Deus habita a matéria. Além de a ter criado, assume a existência em carne, em corpo, onde todo o sentir fala d’Ele. (…)
Pe. Paulo Duarte SJ – In Pontos SJ