
Parte II – C: De forma muito genérica poderíamos argumentar que existe uma certa pedagogia nesta mentalidade: manter o povo na prática do bem e nos caminhos da justiça, sob uma ‘ameaça’, pois o afastamento do Bem Supremo é sempre causa de determinada infelicidade e infortúnio, sem que isso se traduza, automaticamente, na negatividade que sucede no decorrer dos dias. O próprio sistema complexo sacrificial judaico é reflexo desta mentalidade que temos vindo a evidenciar: o sofrimento é uma punição vinda de Deus; quando se realiza um sacrifício adequado essa punição como que fica suspensa. Os escritos do Segundo Isaías falam-nos dos tempos após o exílio da Babilónia e produzem uma reflexão sobre o ‘sacrifício substitutivo’.
O Povo já tinha sido duramente punido. Agora, era tempo de um novo relacionamento com Deus, que perdoou ao Povo e este expiou o pecado. Aqueles que foram levados para o exílio são chamados ‘Meu servo’. É neste sacrifício substitutivo que a reflexão cristã irá ler Isaías nos capítulos 52 e 53. Ainda que esta interpretação seja justa pelo cristianismo, parece que o judaísmo não alimentava a ideia de um messias que iria sofrer pelos outros. O messias era uma figura de grandeza e de poder. A lógica do Segundo Isaías era a tradicional desobediência-punição e sacrifício-expiação, por isso os cristãos começaram a ver nesta figura do ‘servo’ o próprio Jesus Cristo que no sacrifício da cruz expia e suspende a pena sobre a humanidade. Surge um problema nesta conceção profética: se o povo seguir o único Deus serão extinguidos os sofrimentos e punições, que, na verdade, se perpetuam na história. O abandono dos ídolos não foi sinónimo da extinção dos males. Introduz-se aqui o conceito de utopia, que pode significar ‘bom lugar’ ou também ‘não lugar’.
Na verdade, os grandes impérios foram ‘esmagando’ o pequeno Israel e o reino prometido não chegava. A universalização simplista das reflexões contextuais dos profetas gerou uma sensação de insatisfação para esta explicação dos males constantes. É conveniente referir que os profetas não consideram Deus como a origem do mal, mas o próprio ser humano, que pratica a injustiça o explora o seu semelhante. Ao mal que acontece é-lhe atribuída uma perspetiva ético-religiosa, ou seja, um ‘duplo pecado’: contra Deus e contra o ser humano. O Novo Testamento apresenta a morte de Jesus não apenas como uma consequência da perversidade do Império Romano, mas parte do Mistério de Deus revelado.
O foco não é a criminalidade injusta da crucifixão, mas o Plano de Deus em realização, para obter o Bem Maior da Humanidade: a salvação. Perante a insanidade do mal no mundo, os ateus e agnósticos fortalecem a sua não crença. Alguns crentes deixam-se levar por esta tempestade do mal, diluindo a sua fé em Deus, que vai com o vento. Intelectualmente, alguns pensadores querem abandonar a sua crença em Deus, mas sentem um constrangimento: «Não tenho ninguém a quem expressar a minha gratidão.
Há um vazio dentro de mim, o vazio de querer alguém a quem agradecer, e não vejo uma forma plausível de o fazer. Por outro lado, agradecer e louvar a Deus pelos bens que temos, pela comida, pela saúde, não será uma forma indireta de acusar a Deus de negligenciar as necessidades dos outros que não possuem o essencial para viver? Não poderá ser uma forma de reconhecer o meu favoritismo diante de Deus e de O insinuar como caprichoso? Naturalmente, a bondade e a maldade humanas são insuperáveis, mas se víssemos um pai humano a alimentar um filho e deixar outros morrerem de fome que sentença lhe iríamos atribuir? Alguém poderia objetar, com alguma razão: O silêncio da humanidade face ao mal é o silêncio de Deus, e a sua inação é também a Sua. (continua…)
Pe. Virgílio Marques Rodrigues